quarta-feira, 30 de abril de 2014

Lembras-te?  Faz hoje anos que te conheci.  Era a minha primeira saída sozinha a pretexto da excursão de finalistas do liceu.  As recomendações de casa foram para aproveitar a viagem e me distrair.  Para me portar bem, também.  Porque  eu tinha merecido.  As notas eram boas e lembro-me que nem precisei de insistir no pedido.  
Não me recordo de te ter visto antes, apesar de andarmos no mesmo liceu e de nos termos cruzado algumas vezes nos corredores.  Nem tu tinhas reparado em mim, seguramente.  
Naquela manhã entrei na camioneta e sentei-me à janela.  Não me preocupei com quem se iria sentar ao meu lado, estava mais habituada a ter por companhia os meus pensamentos.  "Está alguém sentado neste lugar?"  foi a frase que me fez reparar em ti.  "Não se vê logo que não?", apeteceu-me responder...mas fui educada e simpática e acabaste por ficar por ali.  Hoje penso se não teria sido uma aposta, os teus amigos estavam todos sentados nos bancos lá atrás... 
Começámos a conversar devagarinho e alguns quilómetros depois já sabias tanto de mim como eu de ti. Descobri contigo o gosto de falar e de ouvir.  E de passear de mãos dadas. Lembro que ficámos inseparáveis, desde aí.  Prometemos tudo um ao outro, até ficar juntos para sempre.  Não conseguimos cumprir dessa vez.  Não teve que ser...  
Um destes dias, sem saber como, encontrei-te de novo dentro da minha vida, como da primeira vez... ♥
Já experimentou pensar?  Pensar, isso mesmo, juntar as letras, formar palavras e frases, pontuá-las com vírgulas, pontos, reticências... ou mesmo interrogações?  Imaginar lugares, cheiros e pessoas?  Inventar letras para músicas ou novas cores para o nascer do sol? Mas tudo isso dentro da sua cabeça? Na intimidade dela?  E deixando-me a mim e aos restantes passageiros do comboio, com espaço para esticarmos também os nossos próprios pensamentos?  Sem estar constantemente a tropeçar no ruído da sua voz ao telefone?  Experimente, vá lá. Não tenha medo.  Vai ver que gosta, que é viciante.  Vai ver que é a melhor coisa que se pode fazer sozinho...

sábado, 26 de abril de 2014

Pessoalmente pouco tenho que saudar no 25 de abril. As memórias que tenho desse dia misturam-se com muitos sentimentos e quarenta anos ainda não chegaram para os arrumar no seu lugar. Aquele dia teria sido um qualquer dia de abril como tantos outros, não fosse o facto da minha vida ter mudado completamente a partir dele. Seria apenas mais um dia. Nessa manhã, a minha mãe desembarcaria em Lisboa, vinda de Moçambique, acompanhada pelos meus dois irmãos mais novos, para surpreender os avós que faziam anos de casados no dia seguinte. Ia ser uma surpresa fantástica! Mas a vida não quis assim. Semanas antes fomos todos surpreendidos com a doença incurável que se abateu sobre o Miguel e que veio alterar todos os planos do resto das nossas vidas. E o destino da viagem de avião já não foi a metrópole mas sim a África do Sul, onde ele passou a ser consultado mensalmente até à operação, alguns meses depois.
"Un coup d'étad à Lisbonne", dito por um taxista numa rua de Joanesburgo e que entretanto os confundiu com franceses - foi assim que os meus pais souberam da revolução que estava a acontecer a milhares de quilómetros. E aí? O que era isso comparado com o golpe que a vida lhes estava a infligir? E que acontecia ali mesmo, dentro daquele taxi, dentro da cabeça deles? Naquele momento e durante muito tempo, o 25 de abril ia ter de esperar... O Miguel teria apenas um mês de vida - 30 dias! - no diagnóstico daquele médico e nada poderia ser feito para o reverter. Logo ele, que nunca tinha estado doente nos seus quatro anos de vida. Logo ele, com quem eu dividia o quarto, o signo, as brincadeiras...
Por causa desse 25 de abril e do que ele provocou na vida das pessoas, a família separou-se, os amigos deixaram de se ver, as rotinas foram quebradas. Os dias passaram a ser inseguros e a rua ficou armada. Expressões novas e até aí desconhecidas passaram a decorar muros e paredes. Palavras como mentira, morte e desconfiança tomaram o lugar de outras e os dias deixaram de fazer sentido. Não foi só sem as irmãs e as brincadeiras que eu fiquei de repente. Foi sem os colegas, os amigos, os móveis, a casa. E a saúde do Miguel. Naquele ano cresci décadas. E nunca mais nada foi igual.
Pessoalmente pouco quero recordar essa data. E das outras que se lhe seguiram. Mas nem é preciso querer. As lembranças vivem dentro de mim todos os dias e quarenta anos não foram suficientes para as dissipar.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Às vezes falo com Deus. Ås vezes questiono-o, peço-lhe ajuda, reclamo...
Nem sempre é fácil entendê-lo, às vezes demoro mesmo a conseguir. Outras vezes, confesso, quase desisto de o fazer. De todas elas, porém, chego à conclusão que a sua paciência é imensa e que é ele que deve desesperar comigo. Desesperar, mesmo. Pelas vezes que eu fico impaciente, pelas outras em que me fecho dentro de mim e não quero saber, por todas aquelas em que o procuro só quando o caminho aperta e a visão fica turva. 
Mas não! Ele não desiste. De todas as vezes o seu discurso é claro. E calmo. E a resposta está lá, pronta a ser usada por mim, pronta a servir de ensinamento. 
Às vezes penso com Deus. Com a sua ajuda. E ele responde-me, ainda que só por gestos. Ainda que só por sons. Ou pelo movimento do vento no meu cabelo.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

E de repente, num só ano, mudamos tudo na nossa vida. Deixamos para trás o caminho feito durante anos e lançamo-nos, com o coração aberto, em direcção ao infinito. Não sabemos o que há pela frente, nem entendemos porque temos que mudar quando tudo nos parece estar bem. Sabemos apenas que tem de ser, que só pode ser melhor.
De repente, não há tempo para pensar, não é hora de "porquês", de olhar para trás. Descobrimos que o caminho pela frente é imenso e inesgotável. E que tudo será possível desde que feito com calma. E que o tempo é todo nosso.
De repente, passamos a poder acordar devagar, a ter tempo para dedicar aos outros, a saborear a cidade, a viver.
De repente encontramos pessoas novas, conhecemos outras histórias, sabemos que estamos a mudar o final da nossa.
De repente viajamos. Vamos outra vez a lugares que queremos conhecer melhor. Voltamos a usar o metro, o comboio, a andar a pé. Deixamos o carro esquecido no estacionamento. 
De repente passamos a ter tempo para almoçar com amigos, para visitar quem precisa do nosso tempo, da nossa atenção. Para ler. Para dormir. Para experimentar novas receitas na cozinha. Para ir às compras com elas, as filhas. Para as ouvir e abraçar. Para passear com ela e com o Diesel.
De repente encontramos um novo futuro. Numa cidade inesperada que passamos a sentir nossa. Construímos uma casa e uma vida desde o nada e sentimos que temos tudo nas mãos.
De repente o habitual parece novo. Aprendemos as rotinas mil vezes feitas e gostamos. muito.
De repente a nossa vida foi virada do avesso. De todo. De repente, e citando Bob Marley, descobrimos que o avesso é mesmo o lado certo.
E de repente percebemos como é bom viver assim... ♥
Não gosto de Quim. Nem de Chico. Ou de Dado. Gosto de Joaquim, de Francisco, de Eduardo. Não gosto de diminutivos. Prefiro nomes inteiros, com princípio e fim.
Gosto da sonoridade doce de Francisco. Já Chico parece-me assim meio estranho, quase infantil e brincalhão. Não me imagino a dizer "amo-te, Chico". Mas se for "Francisco, tu és a minha vida" já tem outro sabor. Chico tem mais a ver com "passa a bola, Chico!", com brincadeiras e corridas. 
Não gosto de diminutivos. Na infância tive um amigo a quem chamávamos Dadinho em vez de Eduardo. Brincávamos juntos, fazia parte do grupo de amigos do Clube Militar, em Lourenço Marques. Deixei de o ver há muitos anos. Às vezes, penso que o Dadinho não quis crescer e ficou sempre daquele tamanho. Ou então, se calhar, transformou-se num sério e bonito Eduardo e já tem netos. Quem sabe? 
Em tempos, também eu tive um diminutivo. Era a Sissi e assim foi durante muitos anos, pela boca da minha Avó. Invariavelmente os muitos postais que me escrevia para Moçambique começavam por "Sissi, minha querida neta" e eu sabia que eram para mim. E respondia sempre que a ouvia chamar-me assim. Mas hoje não me acompanha mais, não o trouxe comigo quando cresci. E, se pensar bem, nem me consigo lembrar de quando o perdi... acho que o deixei bem lá atrás, num lugar que visito de vez em quando onde vivem todas as minhas memórias e que chamo de saudade.
A vida tem-me mostrado que quando vamos fazer uma viagem, por mais pequena que seja, nos damos tempo de fazer a mala e de organizar o que deixamos para trás.  No regresso, dentro da mala, trazemos recordações da viagem, prendas para os que ficaram em casa e, na maioria das vezes, roupa suja para lavar.  Retomamos o nosso quotidiano, arrumamos a mala no seu lugar até à próxima viagem e seguimos com os assuntos que deixámos pendentes e que nos preenchem os dias. Parece simples...  
Mas a vida  também me tem revelado que quando morremos, na maioria das vezes, não temos oportunidade de escolher o que levamos, nem de arrumar o que fica para trás.  Nessa altura, vestem-nos com o que está mais à mão, quase nunca ao nosso gosto e, depois de termos partido, começa a longa viagem dos que cá ficam pelo interior das nossas gavetas, dos nossos armários, da nossa alma...  há mesmo pessoas que só nos ficam a conhecer nessa altura, que ficam surpreendidas, que ficam desiludidas, que ficam...
Não me parece justo.  O imprevisto, o inesperado, o desaparecimento do chão debaixo dos nossos pés.  E também o peso que deixamos nos ombros de quem tem a ingrata tarefa de nos arrumar, a nós e ao nosso quotidiano, num arquivo morto sem ordem nem classificação.
A rua onde moro é uma rua sem saída.  Acaba no portão de uma antiga quinta que teima em resistir ao progresso.  Tem prédios novos que se misturam com casas antigas, quem sabe do tempo em que naquela quinta havia vida.  
A rua onde moro começa num arco debaixo de dois prédios.  Logo à entrada tem um fotógrafo e um salão de cabeleireiro.  Pequeno, de bairro.  Tão pequeno que vive lá a cidade inteira.  Acredito mesmo que se lá passasse uma manhã, ficaria a saber da vida de quase todos os habitantes.
Tem ainda uma mercearia e um café.  E casas, muitas casas onde moram vidas que se cruzam com a minha todos os dias.  Que me sorriem e cumprimentam quando me veem.  E que, depois, seguem o caminho delas e eu o meu.
Não tem saída, a rua onde moro.  Para sair dali tenho que dar a volta e voltar para trás.  Como na vida, por vezes.  Quando me deparo com um muro e não consigo atravessá-lo.  Quando concluo que o caminho que faço estreita lá à frente e acabará por me sufocar.  Quando percebo que há outras opções mais felizes, um pouco mais ao lado.  E que essas, sim, são ruas com entrada e com saída e onde dá gosto viver.
Não tem saída, a rua que tem a casa onde moro.  Mas não me limita, por isso.  E no fim do dia, quando é hora do regresso, sinto que me acolhe junto com o resto do mundo que também mora na minha rua sem saída.

domingo, 13 de abril de 2014

Os irmãos.  Que ganhamos ao nascer sem termos feito nada para isso.  Com quem crescemos e partilhamos memórias.  Com quem nem sempre estamos de acordo.  E nem sempre entendemos o seu ponto de vista.  Ou, ainda, conseguimos que percebam as nossas escolhas.  
Com quem aprendemos a dividir as brincadeiras e o quarto.  Também os afectos dos pais e dos avós.  Mas nunca os amigos.  Com quem comungamos parecenças, tiques e apelidos.  Com quem temos as primeiras discussões, algumas tão feias que nos fazem desejar ser filho único.  Ainda que por pouco tempo.  A quem procuramos quando é hora de desabafos, de confidências.  E quando a tristeza e a solidão aperta. 
Os irmãos.  Que raramente escolheríamos para amigos.  Porque somos diferentes deles.  Porque os irmãos não se escolhem nunca.  São nossos porque sim.  Veem no pacote quando nascemos, ainda que isso aconteça alguns anos depois.  Acompanham-nos pela vida fora, ainda que à distância, algumas vezes.  Ainda que de costas voltadas, outras vezes.
Mas os irmãos são sempre do nosso tamanho.  Fazem parte de nós, da nossa vida.  E somos o que somos porque os temos.  Porque eles moram em todas as histórias do nosso passado.  Porque eles estarão lá connosco, quando chegarmos ao futuro...♡

(e porque hoje é "dia dos irmãos")
Não se vê a rua do lugar onde trabalho.  A janela é longe e está fora do meu campo de visão.  À minha frente tenho uma parede onde está um desenho do mapa mundo e o meu pc.  Em ambos e com ambos posso viajar mentalmente.  Sem sair daqui, consigo chegar a destinos tão longínquos como uma praia na Austrália ou um restaurante em Macau.  Imaginar-me em Nova Iorque ou em Paris, sentar-me numa esplanada na margem do Sena ou subir à Torre Eiffel.  Visitar museus e galerias de arte ou, até mesmo, passear num qualquer jardim da cidade.  Eu posso.  Mas não quero.  Falta-me o cheiro, o vento na cara, o barulho da rua.  Falta-me as vozes dos transeuntes, o assobio do rapaz à rapariga que ali vai e que me lembra as minhas filhas.  Falta-me o ar frio nas mãos e a senhora a quem pergunto uma morada.  Falta-me gente à minha volta.  Sobra-me conforto e espaço.  E tempo.  E saudades.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Quanto tempo dura uma vida?  O tempo suficiente para se viver tudo?  O  tempo bastante para se aprender alguma coisa?  O tempo curto para o perdermos à procura dela?   Ou o tempo longo demais para nos cansarmos dela?  
Há vidas que não duram tempo nenhum.  Por maior que seja a distância entre o nascimento e a morte, nada de importante acontece entre os dois.  Nada que fique para o dia seguinte.  Para os dias seguintes.  Há vidas que acabam muito antes da morte chegar.  Outras que nem chegam a acontecer.  Por outro lado, há pessoas que continuam vivas muito tempo depois do próprio tempo ter parado para elas.  Muito para além do momento que é o dia seguinte.  Essas vidas não se perdem no tempo, não perdem tempo porque sabem como ele é precioso.  E cada vez mais raro.  Essas vidas ganham só por se darem aos outros.  Se dedicarem aos outros.  Por partilharem.  Transmitirem esperança.  E por enriquecerem só por isso.  

Há vidas que duram a vida inteira.  E no final, quando o tempo acaba, ficam a fazer eco nos dias de quem deixam por cá. ♡

domingo, 6 de abril de 2014

A casa.  A nossa casa.  A casa enche-se de vida quando tem a nossa vida dentro dela.  E fica vazia de todas as vezes que a metemos dentro de sacos e a transportamos connosco.  De todas as vezes que fechamos a porta pelo lado de fora e a deixamos habitada pelo silêncio.  É quando as paredes e as janelas deixam de reflectir a luz e o brilho e servem apenas para separar os quartos, cá dentro, e a rua, lá fora.  
Já tive muitas casas durante toda a minha vida.  De todas as vezes, sempre pensei que aquela seria a última.  Não por ter alguma coisa contra as mudanças, mas porque criar uma casa é colocar lá um pouco de nós, do nosso cheiro e da nossa alma.  E passa a ser o nosso ovo, o centro do nosso mundo.  Tudo o que acontece na nossa vida começa e acaba na casa.  Dentro dela, por causa dela.  De todas as vezes foi assim, sempre que mudei de casa.  De todas as vezes deixei um pouco de mim preso nas paredes, colado às janelas.  Suspenso do tecto, também.   
Mais uma vez tenho uma casa nova.   Numa cidade nova, numa vida nova.   Aos poucos vou-a sentindo a minha casa, o meu refúgio.  Vou colando às paredes um pouco da minha pele.  Olhando para os espelhos e gostando de me ver ali. Desta vez sei que é com prazo de validade, não me ocorre pensar que é a última.  O  único pensamento que tenho comigo é simples e claro como água - a minha casa será sempre o lugar onde tu estás... ♥