sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Hoje foi o dia em que eu morri.  Quando de manhã o despertador tocou, já eu estava colada no tecto a olhar para a cama desfeita.  Lá em baixo , uma mulher igual a mim, vestida só com a pele que lhe cobre o corpo, parece dormir.  A pele dela é muito clara, mais do que eu me lembro de ter e, à volta dos olhos, pequenas sombras revelam olheiras de quem se deitou tarde.  Está com um ar tranquilo, em paz,  de quem sabe que ainda pode dormir descansada durante mais algum tempo.  E ela ainda não sabe, mas vai ser durante o resto do tempo...
Ao lado dela, na cama, tu estás prestes a acordar.  Eu olho para ela e para ti, quero avisar-te mas não sai nenhum som da minha boca.  Vejo-te esticar o braço para desligares o relógio, para adiar por mais uns minutos o acordar, como todas as manhãs.  Depois já sei que te vais virar para mim e abraçar-me para que eu desperte dentro dos teus braços.  
Hoje não vai ser assim.  Olho-vos dentro dos lençois e penso como foi isto acontecer.  Como te fui deixar sozinho, eu que nem sou de sair sem avisar, sem me despedir.  Com quem vais partilhar os nossos dias, a partir de hoje?  Com quem vais rir e pensar em voz alta? Que outra mão vai segurar a tua?  Que corpo vais abraçar?  Quem vai acabar o que eu tenho ainda a meio?  E o que eu nem sequer comecei?  A sério?  Esta coisa da morte é mesmo inútil, é sempre um desperdício.  
O mais estranho de tudo é que não me senti morrer.  Não doeu, não fiquei com frio, não tive medo.  Foi assim como quem consente.  
E de cá de cima, com os olhos toldados pelas lágrimas eu já não sinto nada.  Só uma imensa pena e uma dor na alma que me sufoca um grito na garganta...

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Que outra coisa significa a saudade a não ser o vazio que sinto quando não estás? 
Que representa a saudade a não ser o egoísmo de me sentir só?  De não aceitar a tua ausência.  O teu silêncio.  A falta do teu abraço.  O espaço vazio na cama onde antes estavas sempre e para sempre, pensava eu. 
Que outro sentido tem a saudade a não ser ficar parada lá atrás?  No tempo em que a tua metade me fazia sentir um todo.  Nos dias que já não são o dia de hoje. 
Que sentimento é este que eu sinto hoje?  Chamo-o de saudade, mas é angústia?  Solidão?  Ou, ainda, tristeza?  
Não sei...  só sei que não é a tua falta que eu sinto.  É a minha.  É a falta de mim, completa.

sábado, 25 de outubro de 2014

Nove e meia da noite e ela sem aparecer.  Tinham combinado ir juntos ao cinema, depois de jantar e ele até já tinha comprado os bilhetes para evitar atrasos de última hora.  O filme que iam ver tinha estreado há uns dias e era difícil arranjar lugares bem posicionados.  Ele não gostava de ficar perto demais do ecrã, ela, míope não assumida, preferia ficar logo nas primeiras filas, enfim, tinham sempre que chegar a um consenso e decidir por uma das filas a meio da sala.  A sessão começaria dentro de 15 minutos e ele não conseguia perceber a razão deste atraso.  Logo ela que nunca chegava tarde, logo ela que sempre avisava quando algum imprevisto acontecia... e olhava de novo para o relógio de pulso.
Tinham discutido ao telefone por um mal entendido sem importância, pelo menos para ele, e nem queria acreditar que a ausência dela se devia a isso.  Ela era sempre tão tolerante, dava a impressão de suportar tudo e compreender sempre o que acontecia.  E é claro que não ia ser um desentendimento sem importância que ia alterar isso.
Na semana anterior ele respondera a uma colega, por mensagem, e fora mais intimo do que era suposto.  E do que era sentido, porque aquele flirt que lhe estava a nascer nas mãos não lhe dizia de facto nada.  Quis ser galã, ter a sensação de ser um D Juan por umas horas e depois passava.  Mas não passou.  Era apenas uma brincadeira sem consequências, ele até nem achava a colega nada de especial, apeteceu-lhe brincar com o fogo e a seguir lavar as mãos, mas não resultou.  A colega entrou na brincadeira e quando ele deu por isso, ela levara demasiado a serio as suas investidas e pensou que teria ali um amor para a vida.  As mulheres são naturalmente românticas e fazem logo o filme todo, achava ele.  Ela até já o imaginava a deixar a namorada e a viverem juntos para o resto da vida.  E agora?  Como se ver livre deste novelo que ele próprio tinha tricotado?   Como pôr um ponto final numa historia que, para ele, nem sequer tinha tido principio?  O melhor era deixar o assunto morrer por si, desejava intimamente que a namorada nem desse conta e que a colega se esquecesse dele. 
Mas não foi isso que aconteceu.  A namorada começou a estranhar o telemóvel dele sempre em silencio, a preocupação em ler logo as mensagens que entravam e as apagar de seguida.  A "outra", coitada, tinha sido induzida em erro e agora queria o seu pedaço...  e não parecia querer abdicar dele!
Acabou por contar tudo à namorada.   Ou melhor acabou por ser levado a contar tudo porque ela o questionou directamente.  Ele até ia contar, desabafar com ela, procurar a solidariedade dela nesta história em que se considerava vítima, mas ela chegou primeiro.  E não foi bonito.  Para ele ela tinha apenas que entender e a "outra" que esquecer.  Simples!
Há desencontros que não servem para nada.  Há aventuras que nos cortam as asas, mesmo antes de começarem.  Há alturas na vida em que apetece ter um botão de "delete" para carregar.   E  percebeu que a espera, à porta do cinema com os bilhetes na mão, era apenas a primeira de muitas que  teria daí em diante.

"Desculpa!", escreveu mais tarde numa mensagem.  "Eu não tenho nada com ela e isto foi tudo um mal entendido.  Tu és quem eu quero para a minha vida."   Mas ela já não leu nada disto.  Nem iria responder.  Sentada dentro do carro, numa qualquer rua de Lisboa, acabara de ver com os seus próprios olhos tudo o que ele tinha escrito à "outra", durante uma semana inteira e decidira, naquele momento que já não queria ser a vida dele.  "Nada é para a vida", pensou "nem mesmo a própria vida"...

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Acredito no amor à primeira vista.  Acredito que é possível, no tempo que demora pousar os meus olhos nos teus, ficar cativa de ti para sempre.  Acredito ainda que isso só acontece porque as nossas almas já se cruzaram, muito antes mesmo de nos termos encontrado com o olhar. 
Acredito porque já me aconteceu.  Porque já encontrei uma alma que me olhou com os olhos que a vestem e que se apaixonou por mim no instante desse olhar.  E eu por ela.  E porque tenho a certeza que acontecerá de novo sempre que a voltar a encontrar num qualquer outro dia, num qualquer outro espaço.
Acredito no amor à primeira vista.  E à segunda e à terceira e de todas as vezes, porque sei que o amor é uma ocupação de vinte e quatro horas.  E porque de cada vez que olho para ti, eu me apaixono por essa tua alma que vive, também ela, presa à minha para sempre.
Acredito no amor para sempre.  No amor que resiste.  Que não desiste.  Que mesmo quando pensámos que acabou, ele ficou lá, quieto a um canto, pronto para se fazer sentir ao mínimo sopro.  Acredito porque me está a acontecer, porque a minha vida é o exemplo disso.  Porque esse amor me faz sentir ainda mais feliz, ainda mais segura, ainda mais bonita.  E, sobretudo, porque esse mesmo amor recebe todo o outro, o que eu tenho para dar e se alimenta apenas dele.
Acredito no amor sem prazo de validade.  No que viverá muito para além do nosso tempo.  E sei que um dia, num qualquer outro espaço, num qualquer outro corpo, esse mesmo amor voltará assim que os olhos se encontrarem.  E aí, eu não saberei o motivo, tu também não, mas ele reconhecer-nos-á e ambos nos voltaremos a apaixonar ao primeiro olhar.
Acredito no amor à primeira vista.  
Porque só pode ser assim.  
Obrigada, meu amor.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Quantas vezes temos o direito de errar no mesmo percurso? 
Uma?  E dizemos que "errar é humano..." ?
Duas? E pensamos que talvez andemos distraídos?
Diversas?  E desculpamo-nos com "só não erra quem não vive"?
Sempre?  Então aí começamos a duvidar da nossa sorte... e, em jeito de consolo, acabamos por perceber que, na maior parte das vezes, o lado errado é o nos leva para o outro, o que está certo.  Pode demorar mais tempo, dar mais trabalho, quase dar vontade de desistir, mas acabamos por chegar lá.   Ao lado certo, ao que naquele momento nos parece perfeito.  E isso é que é valioso para mim.  Tudo o mais são preconceitos antigos que nos castram e não nos deixam respirar. 
Tenho para mim que a obsessão pelo perfeccionismo é um erro tão grande quanto o culto pelo desmazelo.  A radicalização de conceitos e a intolerância só nos afastam dos outros, só nos fecham dentro de nós.  De nada nos serve buscarmos apenas a perfeição quando, pelo caminho, vamos deixando de lado tantos momentos que são tão preciosos.  É quase como se apenas quiséssemos o brilho e acabássemos por ficar encadeados por ele sem conseguir ver mais nada em volta.  A sombra faz também parte da vida, se ela não existisse como reconheceríamos a importância da luz?  
Eu acredito que só por ter conhecido o erro é que descobri a sorte que tenho em ter encontrado o caminho certo.  O que me encanta.
Não há nada melhor do que o conforto de saber que posso enganar-me e voltar ao início, à casa da partida como no jogo da Gloria. 
Claro que há situações irreversíveis.  Erros fatais que deixam de lado qualquer hipótese de remediar, mas aí é como perder um ano na escola.  Se calhar até o podería ter evitado, certamente até deveria tê-lo feito, mas de nada serve insistir em fazer uma autópsia ao passado quando o tempo já é pouco e o caminho manda seguir...
Quantos erros tenho eu ainda no meu caminho?  E quando esgotar o plafond, como é que eu vou saber o bom que é chegar ao lado certo?

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Não percebi!  Dizias que me amavas, que não te saía do pensamento, que era tudo para ti e depois isto?  Dizias que só querias dar-me a mão e guardar-me no teu bolso para toda a eternidade e agora isto?  Na tua imaginação íamos ficar juntos para sempre, para muito além desse sempre que não tem fim, e então?  Na tua boca o caminho nos próximos anos seria feito lado a lado, a minha mão dentro da tua, o meu coração colado ao teu, e...?
Olhaste para o lado e, num momento, tudo mudou.  Deixei de ser o teu ideal de mulher, fiquei reduzida a cinzas, abriste as mãos e deixaste-me ir...  e ainda te vejo a sacudi-las para limpar restos que pudessem ter ficado nelas.
A partir daí e durante muito tempo eu nem consegui voltar a mim.  Fiquei atordoada, como num pesadelo, como dentro de um vulcão adormecido.  Deixei de sentir-me, fiquei com o corpo cansado, com a alma dormente.  A partir daí e para o resto da vida, fiquei descrente, insegura e triste, imensamente triste.  
Cada noite era um pesadelo porque o sono tardava a chegar e, quando finalmente adormecia, era sempre contigo que ocupava os meus sonhos.  Contigo e com o quase futuro que íamos ter.  Pela manhã, cansada, continuava a ter por companhia a tua imagem, que dançava à minha frente sem cessar.  Era a tua voz que eu ouvia noutras vozes.  E o teu olhar quando, por acaso, pousava os meus olhos em outros que encontrava no caminho.   Foste a minha alegria, o meu vício, o ar que eu respirava.  És as minhas lágrimas, a minha dor...
Um dia perceberei que já não estou doente.  Nesse dia, ainda não estarei curada mas a tua presença já não me fará falta.  Tanta falta... e então, quando acordar, já não será em ti que eu pensarei, será comigo que eu acordarei no pensamento.  Comigo e com o lugar vazio que tu ocupavas dentro de mim e que então me pertencerá por inteiro.  Nele caberá a memória do que tivemos juntos, as lágrimas que me fizeste chorar, a saudade que me fazes ainda agora sentir. 
Um dia sei que conseguirei suportar melhor o que aconteceu.  Um dia, que ainda não é hoje...
O que não conseguirei nunca entender é como é que tu, tão pequeno, conseguiste ocupar um espaço imenso dentro de mim e fazer-me crer que eras a minha vida e o meu amor.  E eu deixei! Não percebo!
Para que serve a ausência se não provocar saudade?  E a saudade se não produzir desejo?  E o desejo se não for saciado?
Para que serve o "estar" se não causar contentamento?  E esse, se não for sinónimo de felicidade?  E a felicidade, para que serve tê-la, se não for partilhada?
Tenho saudades das tardes em que ia ao encontro da solidão e da tristeza e lhes fazia companhia.  E lhes encurtava o tamanho e a dor. 
Sinto falta das minhas mãos cheias de tudo o que lá deixava.  Do sorriso que me acolhia, do tempo sem pressa, dos ouvidos disponíveis para tantas histórias.  Algumas mais tristes que outras, mas todas importantes.  Para eles, que as contavam, para mim que as absorvia como uma esponja. 
Sinto saudades de ser esperada. De ser bem vinda.  De sentir a falta que deixava no meu lugar, de uma semana para a outra.  Sinto saudades de, ao sair, abençoar a vida e a saúde.
Não sei o que aconteceu ao Sr João ou à D Júlia.  Ainda hoje recordo as mãos da D Henriqueta e consigo ouvir na voz do Sr Manuel, diabético invisual, a frase com que sempre me recebia "gosto tanto de a ver cá!".  Ou a forma como Vasco Lourinho me apresentava aos seus amigos que o iam ver, como sendo a "voluntária simpática, a única que está cá porque quer", explicando depois que tanto os doentes como o pessoal estavam ali porque tinha que ser.  E eu sorria.  Sorria sempre, mesmo nas alturas em que me apetecia chorar. 
Tenho andado a fazer de conta que não ligo às saudades.  Quando elas chegam, assobio e olho para o outro lado, como se elas não existissem.  Mas de todas as vezes que fico triste, que me apetece voltar, fecho os olhos e regresso aos locais onde estive ontem e, de novo, volto a vestir a minha bata branca com o colarinho de risca verde e a entrar nos quartos com o meu melhor sorriso e umas quantas revistas na mão.  E comigo levo o mundo cor-de-rosa para que o outro, o deles, o mundo real, fique um pouco menos cinzento, um pouco menos triste e sozinho.

(Diário de uma voluntária com saudades...)