quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Para que serve a ausência se não provocar saudade?  E a saudade se não produzir desejo?  E o desejo se não for saciado?
Para que serve o "estar" se não causar contentamento?  E esse, se não for sinónimo de felicidade?  E a felicidade, para que serve tê-la, se não for partilhada?
Tenho saudades das tardes em que ia ao encontro da solidão e da tristeza e lhes fazia companhia.  E lhes encurtava o tamanho e a dor. 
Sinto falta das minhas mãos cheias de tudo o que lá deixava.  Do sorriso que me acolhia, do tempo sem pressa, dos ouvidos disponíveis para tantas histórias.  Algumas mais tristes que outras, mas todas importantes.  Para eles, que as contavam, para mim que as absorvia como uma esponja. 
Sinto saudades de ser esperada. De ser bem vinda.  De sentir a falta que deixava no meu lugar, de uma semana para a outra.  Sinto saudades de, ao sair, abençoar a vida e a saúde.
Não sei o que aconteceu ao Sr João ou à D Júlia.  Ainda hoje recordo as mãos da D Henriqueta e consigo ouvir na voz do Sr Manuel, diabético invisual, a frase com que sempre me recebia "gosto tanto de a ver cá!".  Ou a forma como Vasco Lourinho me apresentava aos seus amigos que o iam ver, como sendo a "voluntária simpática, a única que está cá porque quer", explicando depois que tanto os doentes como o pessoal estavam ali porque tinha que ser.  E eu sorria.  Sorria sempre, mesmo nas alturas em que me apetecia chorar. 
Tenho andado a fazer de conta que não ligo às saudades.  Quando elas chegam, assobio e olho para o outro lado, como se elas não existissem.  Mas de todas as vezes que fico triste, que me apetece voltar, fecho os olhos e regresso aos locais onde estive ontem e, de novo, volto a vestir a minha bata branca com o colarinho de risca verde e a entrar nos quartos com o meu melhor sorriso e umas quantas revistas na mão.  E comigo levo o mundo cor-de-rosa para que o outro, o deles, o mundo real, fique um pouco menos cinzento, um pouco menos triste e sozinho.

(Diário de uma voluntária com saudades...)

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