segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Sentada num banco do jardim, perto do lago, Maria olhava para ele sem o ver.  Dentro da sua cabeça, atropelavam-se pensamentos e ideias.  Não conseguia reter nenhum, apesar do esforço que fazia para se concentrar.  Talvez aquele não fosse o melhor sítio para pensar na vida e nos problemas.  O alvoroço das crianças que brincavam numa escola perto dali, não lhe permitia separar os pensamentos.  Nem pará-los.  Era hora de recreio também na sua cabeça.  As ideias apareciam-lhe desordenadas e isso ainda lhe fazia mais confusão.  "Então", pensou "também não é preciso decidir hoje.  Amanhã será um bom dia para o fazer."
O problema é que já andava assim há mais de uma semana.  Ficou desempregada no verão e, no início, até lhe agradou a ideia.  "Tudo vai correr bem", dizia-lhe a mãe "Deus fecha uma porta mas abre logo uma janela".  Ela não se preocupou logo.  Teria oportunidade de ir à praia, passear pela cidade, ir ao cinema, visitar museus, galerias de arte, em suma, fazer o que lhe apetecesse.   Até ali o seu tempo livre resumia-se ao fim de semana e isso representava "gente aos molhos" onde quer que fosse, filas para comprar bilhetes, para andar no trânsito, para pagar as compras.  Quando dava conta já estava no final do domingo e não tinha tido tempo de fazer nada do que sonhara.  Agora sim, ia aproveitar os primeiros tempos daquelas férias impostas para se divertir.  Para se refrescar.  Para visitar pela primeira vez locais que só conhecia das revistas ou das conversas dos colegas. 
No primeiro mês não perdeu tempo e fez tudo o que quis.  Agarrou os dias com ambas as mãos e a cidade foi dela.  Na véspera pensava o circuito e saía, manhã cedo, determinada a aproveitar todos os momentos.  Foram dias curtos para tanta coisa, mas que a enriqueceram imenso.  Andou sem horas por onde quis, visitou lugares novos, extasiou-se com recantos da cidade onde viveu desde sempre, mas que só conhecia de passar por ela a correr, durante a semana.
Aos poucos, porém, voltou a vontade de trabalhar, de se sentir ocupada.  Toda a sua vida fora feita de rotinas, era difícil cortar com isso de um dia para o outro.  Começou a concorrer a empregos que via anunciados no jornal.  Ao principio estava cheia de esperança, achava que seria fácil.  Ela era experiente, qualificada, tinha um curriculum tão rico.  Percebeu então que as "janelas e portas" tinham tomado a forma de paredes.  Decidiu começar a procurar ajuda.  Contactou com pessoas que julgava influentes  e, quando deu conta, já tinha contado a sua historia tantas vezes, que já nem a sentia sua.  No final de cada semana sentia a desilusão crescer.  A facilidade com que pensara voltar à vida activa estava a revelar-se afinal amarga e dolorosa.  Era rara a noite que não chorava quando ficava sozinha no quarto, entregue aos seus pensamentos.  Aos 45 anos não tinha nada de seu, a não ser o seu passado.  Vivia com os pais numa casa arrendada por eles no centro de Lisboa.  Em mais nova ainda sonhou em casar e ter filhos, mas o tempo passou e nunca ninguém lhe roubou o coração.  Dava aulas de música num colégio privado, vivia entre acordes, escalas e pautas.  Não lhe faltava nada, os seus dias eram harmoniosos e felizes.  Até ao momento em que o colégio foi vendido e a dispensaram.  "Cada vez há menos crianças", disseram-lhe, "e a maioria das que restam têm um dos pais desempregados e cortam com as disciplinas que não são obrigatórias".  Aconteceu o mesmo à professora de dança e a uma outra que ensinava moral e religião.  "Tristes tempos os que estamos a viver", comentava o pai sempre que ouvia as noticias, ao jantar.  Em vão já tentara desligar a televisão durante as refeições mas a vida do pai era também feita de rotinas e essa era uma delas. 
Um dia percebeu que tinha de fazer alguma coisa, pensou mesmo em emigrar.  Procurou na internet um trabalho compatível com o que toda a vida tinha feito, "a música é uma linguagem internacional, em algum pais arranjarei forma de me sustentar e de poder continuar a ajudar-vos, ainda que de longe" tentava convencer os pais que não a queria ver partir.  "É só até a situação do pais melhorar e poder voltar a casa" prometia-lhes ainda.  Andou semanas a consultar sites de empregos, levantava-se com esperança, adormecia com lágrimas.  Um dia, respondeu a um anúncio que pedia uma mulher com a sua idade, experiente com crianças, para trabalhar na casa de uma família estrangeira.  Foi a uma entrevista, depois a outra, gostou da família, pensou que seria uma situação temporária, quem sabe, um dia voltaria a ensinar musica...  e era neste impasse que se encontrava naquele dia no jardim.  
Os pais não queriam que deixasse de ser professora, tinham desgosto que se transformasse numa governanta (eles diziam "governanta", mas ela ouvia "criada de servir").  Estava dividida, sabia que tinha que fazer alguma coisa, não conseguia escolher o caminho sozinha.
De repente, a quietude da água do lago foi agitada por uma pedra atirada por alguém que passou.  À tona de água formaram-se pequenas ondas circulares que aos poucos foram acalmando até ficar tudo de novo calmo, como um espelho.  Ela percebeu de imediato a mensagem.  A sua vida precisava também de uma pedrada que revolvesse a água, que a pusesse a mexer.  E depois, como no lago, tudo voltaria a ficar tranquilo e seguro como sempre fora.  Por vezes é preciso ter coragem de agitar as águas, de atirar as pedras, de esperar pelo tempo que trás a calma, que devolve a harmonia e a paz.  E no caminho para casa, pensava já na música que ensinaria àquelas crianças com quem iria passar os dias seguintes...

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