Às vezes é preciso mudar o rumo. Às vezes é urgente. Carregar na tecla "apagar" (assim mesmo, em português), encarar o monitor em branco e começar, outra vez, a escrever a história. Mudar de personagens e de cenários, arriscar novos diálogos, quem sabe. Deixar de lado os preconceitos e as dúvidas que só nos lembram as dificuldades que enfrentámos e seguir em frente.
Por vezes, mudar é um acto de coragem. Outras, de egoísmo. Em nenhuma, de apatia. Porque mudar nunca pode ser confundido com remendar. Mudar é renovar, é deixar um tempo para agarrar outro, é dar largas à criatividade e modificar o que não queremos mais. Ainda que contra a vontade dos outros, ainda que sozinhos.
Com ele foi assim. Foi o mais velho de três irmãos, o mais responsável, o exemplo a seguir. Bom filho e aluno de excelência na escola, era o orgulho dos pais e desde muito cedo o destinaram a ser padre. Naquele tempo era a "profissão" que mais honrava as famílias, ter um filho padre era uma bênção divina.
As letras eram a sua companhia preferida, cresceu no meio de livros e apaixonou-se pela língua portuguesa como nenhum outro. Foi para o Seminário do Fundão para não contrariar os pais. Sabia que o curso que queria teria de ser feito em Coimbra, o que representaria um custo demasiado elevado para a família. A irmã mais nova iria ser professora primária como a mãe já era e o irmão do meio, o "delfim", seria o que ele depois quisesse, logo se veria... A vida na província era difícil e os rendimentos dos pais não seriam suficientes para o sustentar durante cinco anos numa outra cidade, com todos os custos que isso representava. Deixou-se, assim, ficar no seminário, todas as noites se interrogava se a vocação demorava muito a chegar, todos os dias se confrontava com a realidade de não querer ser um homem só. Queria ter uma família de carne e osso, queria ensinar, não podia seguir o caminho que os pais tinham escolhido.
Um dia deve ter percebido que todos os dias importam e mudou o rumo. Fez as suas malas, mudou-se para Coimbra. Alugou um quarto numa casa particular e, por causa disso, conheceu aquela que o iria acompanhar para o resto da vida - a sua "Mariazinha", mas isso fica para outra história... Para se sustentar e ao seu sonho, começou a dar explicações para os exames que iam acontecer em Setembro. Logo foi ficando conhecido, o resultado que conseguia com os alunos, com o seu trabalho, foram a porta para o seu êxito. Foi professor do ensino secundário no maior liceu da cidade, foi escritor, editou livros e compêndios de gramática de português, latim e grego. Os seus livros foram usados durante anos a fio na escola, no tempo em que os manuseávamos com cuidado para depois passarem para as mãos dos irmãos mais novos. Parece-me que toda a minha geração estudou pelos livros que ele assina.
Pelo meio, ainda aceitou o convite do regime e foi político. A determinação com que defendia os seus valores levaram-no a aceitar ir para Lisboa, a ficar longe da família e dos alunos e a ocupar um lugar no parlamento. Deus, pátria e família, eram a sua religião. Eram palavras com corpo para ele. Depois de lá estar um tempo, percebeu que todos os momentos contam e que aquele lugar não era para si. A sua missão era ser educador, não demagogo. E mudou o rumo outra vez. Voltou para Coimbra para continuar o que ninguém fazia como ele - ensinar!
Ainda teve tempo de ser marido. E pai. E avô. E amigo. Percebi isso no seu funeral, um dos que mais gente juntou em Coimbra, naqueles anos quentes da revolução.
Depois dele, todos tivemos de mudar o rumo. Os seus livros foram guilhotinados, os muros da sua casa foram sujos com letras que não eram as suas, os seus valores foram sufocados. Ou quase.
O rumo mudou, uma vez mais. Hoje, a sua gramática está de novo na mochila dos alunos, adaptada às letras destes tempos. E os seus valores continuam dentro do coração de muitos que fazem parte da minha história. Para mim, que também uso a palavra como forma de respirar, ele foi um exemplo. O maior de todos. Ensinou-me as regras da sintaxe, a ortografia, os tempos dos verbos, deu-me conselhos que valem até hoje. O melhor de todos, o que aprendi com a sua história, é que o rumo é para mudar quando nos apercebemos que o caminho acaba ali.
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