sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Às vezes é preciso mudar o rumo.  Às vezes é urgente.  Carregar na tecla "apagar" (assim mesmo, em português), encarar o monitor em branco e começar, outra vez, a escrever a história.  Mudar de personagens e de cenários, arriscar novos diálogos, quem sabe.  Deixar de lado os preconceitos e as dúvidas que só nos lembram as dificuldades que enfrentámos e seguir em frente. 
Por vezes, mudar é um acto de coragem.  Outras, de egoísmo.  Em nenhuma, de apatia.  Porque mudar nunca pode ser confundido com remendar.  Mudar é renovar, é deixar um tempo para agarrar outro, é dar largas à criatividade e modificar o que não queremos mais.  Ainda que contra a vontade dos outros, ainda que sozinhos.
Com ele foi assim.  Foi o mais velho de três irmãos, o mais responsável, o exemplo a seguir.  Bom filho e aluno de excelência na escola, era o orgulho dos pais e desde muito cedo o destinaram a ser padre.  Naquele tempo era a "profissão" que mais honrava as famílias, ter um filho padre era uma bênção divina.  
As letras eram a sua companhia preferida, cresceu no meio de livros e apaixonou-se pela língua portuguesa como nenhum outro.  Foi para o Seminário do Fundão para não contrariar os pais.  Sabia que o curso que queria teria de ser feito em Coimbra, o que representaria um custo demasiado elevado para a família.  A irmã mais nova iria ser professora primária como a mãe já era e o irmão do meio, o "delfim", seria o que ele depois quisesse, logo se veria...  A vida na província era difícil e os rendimentos dos pais não seriam suficientes para o sustentar durante cinco anos numa outra cidade, com todos os custos que isso representava.  Deixou-se, assim, ficar no seminário, todas as noites se interrogava se a vocação demorava muito a chegar, todos os dias se confrontava com a realidade de não querer ser um homem só.  Queria ter uma família de carne e osso, queria ensinar, não podia seguir o caminho que os pais tinham escolhido.
Um dia deve ter percebido que todos os dias importam e mudou o rumo.  Fez as suas malas, mudou-se para Coimbra.  Alugou um quarto numa casa particular e, por causa disso, conheceu aquela que o iria acompanhar para o resto da vida - a sua "Mariazinha", mas isso fica para outra história...  Para se sustentar e ao seu sonho, começou a dar explicações para os exames que iam acontecer em Setembro.  Logo foi ficando conhecido, o resultado que conseguia com os alunos, com o seu trabalho, foram a porta para o seu êxito.  Foi professor do ensino secundário no maior liceu da cidade, foi escritor, editou livros e compêndios de gramática de português, latim e grego.  Os seus livros foram usados durante anos a fio na escola, no tempo em que os manuseávamos com cuidado para depois passarem para as mãos dos irmãos mais novos.  Parece-me que toda a minha geração estudou pelos livros que ele assina. 
Pelo meio, ainda aceitou o convite do regime e foi político.  A determinação com que defendia os seus valores levaram-no a aceitar ir para Lisboa, a ficar longe da família e dos alunos e a ocupar um lugar no parlamento.  Deus, pátria e família, eram a sua religião.  Eram palavras com corpo para ele.  Depois de lá estar um tempo, percebeu que todos os momentos contam e que aquele lugar não era para si.  A sua missão era ser educador, não demagogo.  E mudou o rumo outra vez.  Voltou para Coimbra para continuar o que ninguém fazia como ele - ensinar!
Ainda teve tempo de ser marido.  E pai.  E avô.  E amigo.  Percebi isso no seu funeral, um dos que mais gente juntou em Coimbra, naqueles anos quentes da revolução.
Depois dele, todos tivemos de mudar o rumo.  Os seus livros foram guilhotinados, os muros da sua casa foram sujos com letras que não eram as suas, os seus valores foram sufocados.  Ou quase.
O rumo mudou, uma vez mais.  Hoje, a sua gramática está de novo na mochila dos alunos, adaptada às letras destes tempos.  E os seus valores continuam dentro do coração de muitos que fazem parte da minha história.   Para mim, que também uso a palavra como forma de respirar, ele foi um exemplo.  O maior de todos.  Ensinou-me as regras da sintaxe, a ortografia, os tempos dos verbos, deu-me conselhos que valem até hoje.  O melhor de todos, o que aprendi com a sua história, é que o rumo é para mudar quando nos apercebemos que o caminho acaba ali.

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