segunda-feira, 31 de março de 2014

E então?  Dizes-me para não olhar, para não pensar?  Como posso? Como ignorar aquela voz que me fez virar a cabeça?  Como não olhar ao ouvi-la dizer "estou cansadíssima..."?  E a outra voz logo a responder-lhe  "mas nem fizeste nada..."  Como não pensar?  Porque ela? Porque não eu? Os meus  olhos ficaram colados àquela imagem  transparente, quase feita de cera, e eu não consegui desviá-los.  Tinha uma beleza serena, uns olhos azuis conformados e a voz, sim, a voz, quase imperceptível.  A sua idade? Entre a minha e a das minhas filhas, ou talvez fosse antes a idade da minha irmã mais nova.  Sei que as olheiras escuras à volta dos olhos e o lenço preto a cobrir o cabelo que já não tem na cabeça, fazem com que pareça mais velha.  Muito mais... sei ainda que o sofrimento envelhece.  Naquele momento  quis dar-lhe um pouco da minha saúde, ficar com as olheiras dela e disfarçá-las, aliviá-la das dores e da tristeza.  Dizer-lhe que aquilo era só um pesadelo e que estava quase a terminar.  Como  não pensar se a vi depois caminhar à minha frente, ao lado do companheiro, com um peso nas pernas igual ao que eu já sentia no coração? Como posso não pensar? Podíamos ser nós os dois, podiam ser as minhas filhas que tanto adoro...  e depois, será que ela tem quem a acompanhe quando faz os tratamentos?  Será que alguém lhe segura na mão quando as lágrimas correm por aquela face de porcelana?  Será que alguém lhe responde aos porquês?  E chora com ela? Será que a sua alma é, como ela, feita de loiça?  E, também como ela, parece estar partida?  Será que a  sombra da morte, que também senti por ali, se vai afastar do seu caminho?  E colocar um sorriso nos seus olhos e nos do companheiro?  Como não pensar, meu amor, eu que tanto valorizo a vida e a saúde?  Que já soube o que é estar do outro lado e voltar?  Que também fiquei mais velha e com o coração partido?  Como não pensar e não questionar tudo isto?  Como desviar os olhos e o pensamento se eu sei que ela veio comigo para casa e que as lágrimas que tento segurar agora não vão aliviar a sua dor?  Porque ela nem reparou no efeito que teve em mim. Porque o cansaço e a tristeza são as únicas companhias que conhece, para além do companheiro.  Como não querer voltar a encontrá-la um dia destes e saber que o pesadelo acabou? E poder então aí soltar as lágrimas porque eu sei que essas já seriam de alegria? Como não?

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