Diário de uma Voluntária 05/12/2013
Era quinta-feira e tinham combinado almoçar juntos. Contrariamente ao que era costume, ele estava atrasado. Ela sabia que ele não vinha de carro para a baixa, exactamente para não perder tempo com o trânsito e o estacionamento, ele que era sempre tão pontual. A sua intuição disse-lhe que algo estava errado, decidiu ligar-lhe para o escritório na esperança de ouvi-lo dizer que se tinha atrasado com um cliente. Foi um colega que atendeu, diz-lhe, quase a medo, que o tinham levado para o hospital. Foi na saída do metro da Praça da Figueira, quando ia ter com ela. Os últimos degraus já não foram subidos "dois-a-dois", caiu sem sentidos e tiveram que chamar o Inem. Foi o tempo de desligar o telefone, pegar na mala e no casaco e correr para um táxi, na direcção dele. Encontrou-o numa cama, imóvel e cheio de tubos e de dúvidas sobre o que estava a acontecer. Ele já não falava mas ela sabia ler-lhe o pensamento e percebia o que lia. Não houve nada a fazer, o coração dele não resistiu e nem o amor que sentiam um pelo outro o salvou. Iam casar no final do ano, tinham tudo pronto inclusive o vestido de noiva, aos 22 anos o coração dela ficou viúvo, subitamente, numa quinta-feira.
Passado uns anos, depois de arrumar esta perda e de anestesiar a dor, conheceu aquele com quem viria a casar. Era de novo quinta-feira. Foi feliz com ele, muito feliz, segundo me conta. Não havia nada que ele não fizesse por ela. Ele lia-lhe os pensamentos e satisfazia-lhe os desejos. Viviam um para o outro, de tal modo que a filha sentia ciumes daquela dedicação. Foram 44 anos juntos todos os dias até àquela quinta-feira em que ele não resistiu mais à doença que o vinha minando por dentro. Ela estava de novo sozinha e inconsolável. A filha, entretanto, casara e fora viver para o norte - na maior parte dos meses só comunicam ao telefone.
Passaram 11 anos entretanto. Diz-me que não há um único dia em que não chore a ausência do marido. Do resto do passado, só refere que não há explicação para os desgostos que teve, demais para uma só pessoa.
Vive sozinha em Lisboa, a única pessoa de família que tem por perto é uma sobrinha com quem fala regularmente. Há dois meses caiu em casa. Partiu uma perna e teve de ser operada de urgência. Do hospital não pôde regressar a casa e teve de dar entrada num lar, a autonomia ficou comprometida e a necessitar de atenção e cuidados. Foi lá que hoje a conheci e ficámos, desde logo, muito próximas. Em pouco tempo contou-me tudo o que estava preso na garganta, falou-me dos amores, mostrou-me fotos. Era belo o marido, como a filha, ela própria ainda tem traços de ter sido uma mulher muito bonita - "um caso sério com os rapazes" ainda me disse a sorrir...
Quando me despedi diz-me o quanto gostou de me ter conhecido e refere "não gosto de quintas-feiras, perdi sempre os que mais amei nesse dia, preferia tê-la conhecido num outro dia da semana. Vai voltar, não é verdade?"
Hoje é quinta-feira. Como será dentro de uma semana, quando voltarmos a estar juntas, prometo!
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