quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Diário de uma Voluntária 07/11/2013

A revolta é um sentimento muito forte.  Devastador, mesmo.  Já não basta o que a vida lhe deu, um avc aos 41 anos que a deixou cativa numa cadeira de rodas, dependente para sempre dos cuidados alheios e, ainda, este peso na alma, que ela não controla e que lhe prende o pouco que ainda pode movimentar, os olhos, o sorriso, as emoções, o pensamento...
Ao meu cumprimento de bons-dias responde com um amargo "olá", cinzento e gelado, imediatamente antes das queixas de que nada ali está a resultar.  A fisioterapia que não serve para nada, a comida que não presta, os outros utentes que a irritam, os filhos que não a visitam, o ex-marido que a trocou por outra, as auxiliares que a deixam a ver televisão toda a tarde...
Haverá uma ponta de verdade em todo este discurso?  Talvez, mas eu sei que a revolta não a deixa ver mais nada para além da sua amargura.  Nem a deixa aceitar com resignação o que lhe aconteceu.  Nem dá aos outros a hipótese de se aproximarem, de a tentarem ajudar.  
Sinto que ela própria não se ajuda.  Custa-me ver uma mulher tão jovem completamente presa no corpo e na alma e eu não poder fazer nada para alterar este destino.  
Ao almoço, reclamou comigo por ter desviado a cadeira de rodas quando lhe coloquei o avental para evitar que se sujasse.  Ao recolocar a cadeira na mesa, substituiu o normal "obrigada" por um amargo "está mal, antes estava melhor"... não que eu quisesse um agradecimento, entenda-se, mas também não era preciso isso...  acabei por lhe agradecer o reparo e deixar a cadeira como estava inicialmente.
Sei que não nos devemos ligar emocionalmente aos doentes.  Pelo menos é o que nos dizem no início desta caminhada.  Sei, também, que isso não passa de teoria, a maior parte dos dias venho embora a pensar neles e nas possíveis ajudas que lhes possa dar.  Sei, ainda, que é fácil despir a bata, entrar no meu carro e vestir de novo a minha vida que tem sido tão fácil e feliz.
Gostava de a poder ajudar a aceitar o seu destino, já que clinicamente não haverá melhoras.  
Gostava de conseguir que ela experimentasse outros sentimentos que não a revolta. Gostava, sobretudo, que ela percebesse que com os olhos, o pensamento, o sorriso e as emoções, pode ir onde quiser e fazer o que lhe apetecer.  Mas sinto-me presa nas minhas limitações, como se eu fosse a paraplégica e nada pudesse mexer.

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