segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Tinha quase dezoito anos quando entrou naquela casa pela primeira vez.  Vinha recomendada por uma amiga que conhecia os proprietários e que sabia andarem à procura de uma criada de dentro.  Ela tinha o perfil indicado, segundo a amiga, e os senhores eram gente de bem.  Uma família tradicional, o senhor era engenheiro na Câmara, a senhora era doméstica, os filhos e netos viviam no ultramar e só estavam nas férias, de quando em quando.  A casa era grande, o jardim maior ainda, mas essa parte não lhe competiria, era cuidado semanalmente por um jardineiro.  O trabalho que teria de fazer, nas palavras da amiga, era interno, as compras e os recados seriam feitos por uma outra criada de servir que já estava com os senhores há mais de dez anos. Ela ficaria encarregue das limpeza da casa, da roupa e da cozinha.  Sempre que mudasse a estação e fosse necessária uma limpeza maior poderia contar com a ajuda de uma ou outra rapariga que fosse contratada para aquele efeito.  O salário, na boca da amiga, era o que menos importava porque nada lhe iria faltar ali.  Teria cama, mesa e roupa lavada e, ao domingo, poderia folgar à tarde e regressar a tempo de fazer o jantar.  Melhor do que isto não existia, ela nem imaginava a sorte que tinha em a amiga se ter lembrado de a recomendar.
De facto sentiu-se muito bem naquela casa.  Desde o primeiro dia que as atenções da senhora e a educação do senhor a fizeram gostar de tudo o que a rodeava.  A Alice, a criada mais velha, tinha o cuidado de a ensinar todos os dias, por forma a que o trabalho ficasse sempre do agrado dos senhores.  Ela era nova e esperta, aprendia depressa e nunca se importava que lhe chamassem a atenção, entendia que era para o seu bem.  Estava grata à Alice e transferiu para ela o carinho que dedicaria à irmã que nunca teve.  
O seu maior sonho era aprender a ler e a escrever.  Queria também viajar para poder conhecer o mundo, não queria acabar como a mãe que o mais longe que foi tinha sido para o hospital da cidade, dias antes de morrer.  Não lhe foram conhecidos namorados ou noivos, nem nunca teve oportunidade de conviver com gente da sua idade e, mesmo agora, quando saía ao domingo à tarde, aproveitava sempre para visitar lugares bonitos na companhia da Alice que também não tinha família por perto.
Os anos foram passando e, talvez pelo convívio diário, o seu cabelo tomou a cor do da Alice e tingiu-se também de branco.  Quando esta morreu, no hospital da cidade, foi a sua mão que lhe fechou os olhos e foi também ela quem lembrou a senhora de lhe mandar rezar uma missa, mensalmente, a cada dia 15. 
Ficou simultaneamente órfã e vazia com a partida da Alice.  Em casa passou a fazer o trabalho dela que foi acrescido ao seu, mas os passeios de domingo à tarde foram deixando de fazer parte da sua rotina.  Preferia ficar em casa a descansar ou a fazer algum trabalho de costura, passando assim o tempo até à hora de preparar o jantar dos senhores.  Que cada vez ia sendo mais leve, não só pela idade deles mas, sobretudo, pela doença do senhor engenheiro que o forçava a uma dieta mais cuidada.
Um dia a senhora enviuvou e ela, a criada de dentro, foi promovida a dama de companhia.  Passou a acompanhar a senhora para onde quer que esta fosse e até nas férias ficava no mesmo quarto de hotel.  Os filhos, há muito regressados do ultramar, convenceram a mãe a vender a casa grande com jardim e a mudar-se para um pequeno apartamento perto deles.  No início não queria, fazia-lhe falta o espaço e o verde do jardim, mas acabou por aceder aos pedidos dos filhos.  E mudou-se, mais a criada de dentro agora dama de companhia, para um pequeno apartamento na cidade onde aqueles viviam.  E os seus dias passaram a ser todos mais tristes.  Durou pouco tempo desde aí, houve quem dissesse que eram as saudades do marido que não a deixavam, eu acho que era ainda a falta do jardim e das flores que lá ficaram.  Os filhos e netos, no dia a seguir ao funeral da mãe, falaram com ela e disseram-lhe que iam vender o apartamento e que seria melhor ir viver com a sua família.  Sem saberem que a única família que ela tinha eram eles.  E que ela estava, também, órfã naquela hora...
Hoje vive num lar, pago mensalmente com as pequenas economias que fez durante toda a vida e com a reforma que não chega para mais nada.  Os seus dias são passados entre memórias, saudades e suspiros.  Já não faz trabalhos de costura porque a sua vista não o permite.  Também não lê nem escreve porque nunca teve tempo de aprender a juntar as letras.  E, também tal como a sua própria mãe, acabará por nunca viajar para um lugar mais longínquo do que uma ida ao hospital da cidade, um desses dias...


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