Oito de dezembro de mil novecentos e setenta e quatro - um dia que poderia ter sido igual a tantos outros mas que mudou a minha vida para sempre. Para trás ficaram a infância despreocupada e quase feliz, a terra quente do hemisfério sul, os amigos de todos os dias. Os cheiros e as cores de Lourenço Marques, agora Maputo, ainda me acompanharam durante algum tempo, mas essa lembrança foi ficando embaciada com o passar do tempo.
Lembro que era o início de mais uma noite de verão quando embarcámos naquele avião da TAP que nos traria de volta à metrópole, a mim, ao meu irmão pequenito e aos meus pais. Do outro lado do mundo, à nossa espera, estavam os avós e as minhas irmãs mais novas, que já tinham vindo uns meses antes. E também um frio intenso de quase inverno, em dias cada vez mais pequenos, escuros e tristes. Para mim, que só conhecia esta metrópole das férias grandes passadas na Figueira da Foz e em Coimbra, com dias de calor e sol até depois do jantar, o aterrar na Portela com dois graus foi de gelar o coração. O ar triste de todos os que vinham a chegar, na sua maioria retornados das ex-colónias como nós, quase sufocava a alegria de voltar a ver a família que nos esperava à saída. O meu irmão vinha muito doente. Nós ainda não sabíamos mas ele ia morrer dali a cinco meses. Quando os dias começassem a ser maiores e o calor voltasse a fazer-se sentir.
Lembro que naquele dia tudo me pareceu estranho e desconfortável. E as memórias que guardei ainda hoje as sinto como se do negativo de uma fotografia se tratasse. A preto e branco e, o pior, geladas. Dali para a frente foi o tentar pintar com outras cores os dias, uns mais conseguidos que outros, mas os episódios tristes foram fazendo parte do nosso quotidiano. E do de tanta gente, naquela altura.
Não me lembro de ter perdido muito tempo a tentar perceber o que tinha acontecido. Porque motivo a vida que tínhamos tido até ali nos fora arrancada à força, sem espaço para resistir. Os acontecimentos sucediam-se a um ritmo que nem os adultos conseguiam sair do estado de anestesia em que estavam. A maioria tinha vindo de mãos a abanar e tinha de aceitar isso como uma realidade imutável - "vão-se os anéis e fiquem os dedos" dizia-se em jeito de consolo... Os dedos magros, vazios, sem esperança... Falava-se mais mais do passado do que do presente, todos tinham muitas histórias para contar e quase nada para dizer do tempo em que estavam. Do futuro, então, nem se pensava, só os que por vezes alucinavam é que tinham essa ousadia.
Oito de dezembro daquele ano. A vida mudou para mim e para milhões de outras pessoas por esse mundo fora. Eu não percebi. Agora, à distância de quase quatro décadas, percebo que, na maior parte das vezes, a vida não é a fotografia que lhe tiramos, mas antes o negativo dela própria...
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