segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Oito de dezembro de mil novecentos e setenta e quatro - um dia que poderia ter sido igual a tantos outros mas que mudou a minha vida para sempre.  Para trás ficaram a infância despreocupada e quase feliz, a terra quente do hemisfério sul, os amigos de todos os dias.  Os cheiros e as cores de Lourenço Marques, agora Maputo, ainda me acompanharam durante algum tempo, mas essa lembrança foi ficando embaciada com o passar do tempo.
Lembro que era o início de mais uma noite de verão quando embarcámos naquele avião da TAP que nos traria de volta à metrópole, a mim, ao meu irmão pequenito e aos meus pais. Do outro lado do mundo, à nossa espera, estavam os avós e as minhas irmãs mais novas, que já tinham vindo uns meses antes.  E também um frio intenso de quase inverno, em dias cada vez mais pequenos, escuros e tristes.  Para mim, que só conhecia esta metrópole das férias grandes passadas na Figueira da Foz e em Coimbra, com dias de calor e sol até depois do jantar, o aterrar na Portela com dois graus foi de gelar o coração.  O ar triste de todos os que vinham a chegar, na sua maioria retornados das ex-colónias como nós, quase sufocava a alegria de voltar a ver a família que nos esperava à saída.  O meu irmão vinha muito doente.  Nós ainda não sabíamos mas ele ia morrer dali a cinco meses.  Quando os dias começassem a ser maiores e o calor voltasse a fazer-se sentir.
Lembro que naquele dia tudo me pareceu estranho e desconfortável.  E as memórias que guardei ainda hoje as sinto como se do negativo de uma fotografia se tratasse.  A preto e branco e, o pior, geladas.  Dali para a frente foi o tentar pintar com outras cores os dias, uns mais conseguidos que outros, mas os episódios tristes foram fazendo parte do nosso quotidiano.  E do de tanta gente, naquela altura.  
Não me lembro de ter perdido muito tempo a tentar perceber o que tinha acontecido.  Porque motivo a vida que tínhamos tido até ali nos fora arrancada à força, sem espaço para resistir.  Os acontecimentos sucediam-se a um ritmo que nem os adultos conseguiam sair do estado de anestesia em que estavam.  A maioria tinha vindo de mãos a abanar e tinha de aceitar isso como uma realidade imutável - "vão-se os anéis e fiquem os dedos" dizia-se em jeito de consolo... Os dedos magros, vazios, sem esperança...  Falava-se mais mais do passado do que do presente,  todos tinham muitas histórias para contar e quase nada para dizer do tempo em que estavam.  Do futuro, então, nem se pensava, só os que por vezes alucinavam é que tinham essa ousadia.
Oito de dezembro daquele ano.  A vida mudou para mim e para milhões de outras pessoas por esse mundo fora.  Eu não percebi.  Agora, à distância de quase quatro décadas, percebo que, na maior parte das vezes, a vida não é a fotografia que lhe tiramos, mas antes o negativo dela própria...

Sem comentários:

Enviar um comentário