quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Self-made man

Começou a trabalhar aos 14 anos como estafeta na companhia de seguros.  Fazia recados, corria a cidade de uma ponta à outra transportando caixas e envelopes, ia aos clientes, aos bancos, ao correio.  Nos intervalos ouvia as conversas e ia observando o trabalho dos colegas, aprendendo o que é um contrato de seguro, o que é um prémio, o que é uma cláusula.  Por vezes, fotocopiava às escondidas alguns contratos que lhe pareciam mais interessantes e à noite, em casa, lia e relia o seu conteúdo.  As dúvidas, sempre muitas, ficavam para esclarecer no dia seguinte, com o Chefe de Secção que lhe achava imensa graça e lhe respondia sempre com uma paciência infinita.  Os anos foram passando e a escola feita à noite chegou ao fim.  Acabou o curso comercial e tinha agora um diploma nas mãos que lhe abriria as portas do mundo dos adultos.  Continuava ainda a ser estafeta mas já sabia mais do que muitos colegas, o que lhe permitiu ser admitido na primeira vaga que abriu.  A partir daí foi só crescer.  O Chefe de Secção que o ensinava já se tinha reformado, mas outros houve que prestaram atenção naquele jovem com uma imensa sede de aprender.  E de trabalhar.  Para ele não havia horários.  Também não havia mais nada para além daquilo.  Toda a sua vida estava ali.  Quando se deu conta, estava perto dos 30 e nunca tinha tido uma única namorada.  A bem dizer, nem pensava muito nisso, tal era a obsessão com o trabalho e com a constante formação.  A sua vida toda estava ali.  Um dia reparou na Edite que trabalhava no piso de cima e começou a meter conversa com ela.  Sabia já muito de seguros, mas nada da vida real.  A Edite, também solteira mas já mais experiente, ensinou-lhe o que sabia sobre a vida e os amores e firmou com ele um outro contrato, com outras cláusulas, com outros prémios.  Logo depois, ela deixou de trabalhar para cuidar dos filhos que entretanto nasceram.  Ele ia subindo na escala, promoção a promoção, até que chegou a director.  Para alguns colegas era um case study, mas a maioria achava normal aquela ascensão, talvez por o terem conhecido desde sempre e reconhecerem a enorme capacidade de trabalho que o caracterizava.  Cada vez tinha menos vida própria, a sua família vivia dentro de uma moldura de madeira em cima da sua secretária, entre processos de sinistro, avaliações de peritagens e cotações de novos negócios.  Para ele, tanto a mulher como os filhos ficaram para sempre da mesma idade que tinham quando tiraram aquela fotografia.  Quando se cruzava com eles em casa mal os via, tantas eram as preocupações que lhe ocupavam a mente.  Todos os dias dizia para si próprio que tinha de abrandar o ritmo, era o primeiro a chegar e quase sempre o último a sair, imediatamente antes da empregada da limpeza entrar na sua sala para a rotina diária.  O trabalho era a sua vida.  Não falava de outros temas, tudo começava e acabava na sua profissão.  Um dia os filhos cresceram e seguiram a sua vida.  Até na fotografia do casamento da filha ele ficou com o telemóvel na mão.  Assuntos inadiáveis, ele era insubstituível, dizia, em jeito de justificação.  Não deu conta do nascimento do neto, do envelhecimento da mulher, do tempo que não parou... foi surpreendido por tudo isso, para ele "ainda ontem eram pequenitos e já são pais...", era assim que falava dos filhos que não conhecia.  Um dia o coração do estafeta-director recusou-se a continuar no seu posto.  Ficou parado, sentado na secretária onde passou a maior parte dos seus dias, entre processos de sinistro, avaliações de peritagens e cotações de novos negócios.  E, claro, ao lado da família que o olhava de dentro da moldura de madeira em cima da secretária.

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