sábado, 18 de janeiro de 2014

Ela tinha sempre uma opinião sobre todos os assuntos.  Que defendia de uma forma definitiva, convicta e, sobretudo, incontestável. Nunca tinha dúvidas, sabia sempre tudo e, pior do que tudo isso, tinha a certeza que estava sempre certa.  Como era infeliz e triste a sua vida.  E pequeno o seu universo de certezas.  Nunca deu oportunidade a si própria de crescer com a opinião dos outros que, por não coincidir com a sua, a faria ver outros horizontes.  Era como aquelas casas em que as portas nunca estão abertas para entrar, apenas são usadas para sair.
Não havia assunto nenhum que não fosse do seu domínio, ainda que muitas vezes a opinião que manifestava não passasse de um non-sense.  Para ela não havia dúvidas ou incertezas.  Para ela não havia espaço para outras opiniões que não fossem as suas.  Porque o espaço é pequeno e a cegueira dela ocupava-o todo.
Um dia mudou de país para acompanhar o marido que ficou sem trabalho e teve que emigrar.  Deixou a sua zona de conforto, despiu a roupa que envergava habitualmente e ficou nua.  De todo.  À despedida, no aeroporto, só teve o motorista do taxi que a transportou até lá.  ninguém mais saiu do seu percurso para lhe ir desejar "boa viagem".  A culpa foi da chuva forte que caiu nesse dia, pensou ela, mas não, a culpa foi do seu feitio difícil que afastou dos outros a vontade de estar junto dela.  E sentiu que ninguém a acompanhou, que todos ficaram lá atrás, ainda a refazer-se do alívio de a saber ir embora.  Sentiu que nem o marido a acompanhava, ele que não tinha certezas, que vivia cheio de dúvidas.
Poderia ter aproveitado essa mudança para crescer, para nascer de novo, para abrir a porta aos outros mas não, desde o senhor da agência que lhes alugou uma casa, aos vizinhos do prédio, todos logo a ficaram a conhecer pela arrogância que transparecia das suas atitudes.  
E em Paris, na cidade-luz, ela continuava completamente às escuras.  
Anos depois, já sem o marido que entretanto tinha trocado as dúvidas pela certeza de que não a aturava mais, adoeceu.  De uma doença grave, daquelas que nos enchem de certezas de que a vida é única e irrepetível e que a deixou, a ela, cheia de dúvidas.  Ficou, subitamente, sem saber para onde foram as certezas que a acompanharam desde sempre e que agora, numa altura em que precisava tanto delas, tinham desaparecido...
Tornou-se então mais humilde, mais simples, mais gente.  Desejou poder voltar atrás no tempo e refazer junto de todos os outros a opinião que lhes deixara.  Descobriu que isso era impossível, porque era tarde, mas não demais.  Aprendeu , então, a abrir a porta aos outros, a ouvi-los, a saber calar-se, a dar-lhes razão. Sinceramente.  E percebeu, ainda, que perdeu a parte mais doce da vida que tem a ver com os relacionamentos, com a amizade, com a partilha.  E sofreu com isso...
Ontem, no jornal, li sobre a morte dela.  E soube depois, através de um amigo, que tinha doado o seu corpo à ciência, contribuindo assim para ajudar os médicos a acabar com as dúvidas que a medicina ainda tem... Tenho a certeza que agora está feliz!



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